Abstrativização do controle difuso ou difusão de uma abstrativização teórica
Publicado em: Revista da Procuradoria Geral do Estado do Rio Grande do Sul, v. 2, p. 27-38, 2010.
Juliano Heinen[i]
RESUMO
O presente trabalho visa a abordar a construção do sistema jurídico do comon law (anglo-saxão), a partir da Margna Carta inglesa, de 1215, até os dias atuais. A referida abordagem perpassa, necessariamente pelo enfrentamento da evolução do instituto do devido processo legal (due process of law), tanto na sua versão substantiva, como não sua versão formal. Deriva da cláusula em destaque o princípio da razoabilidade, que, ao final, será decodificada nos variados elementos que a compõe, segundo as bases ofertadas pelo referido sistema jurídico.
ABSTRACT
This paper aims to address the construction of legal system comon law (Anglo-Saxon), from the Charter Margna English, 1215, until today. This approach permeates necessarily by confronting the development of the Institute of due process, both in its substantive version, not as its formal release. Derives from the clause highlighted the principle of reasonableness, which in the end will be decoded in the various elements that compose it, according to the bases offered by that legal system.
PALAVRAS-CHAVE
Comon Law; devido processo legal; princípio da razoabilidade;
KEYBOARDS
Comon law; due process of law; principle of reasonableness;
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO; 1 CONTRIBUTO DO DIREITO INGLÊS: BASES INICIAIS DO SISTEMA JURÍDICO DA COMON LAW; 2 CONTRIBUTO NORTE-AMERICANO: EVOLUÇÃO DO SISTEMA; 2.1 A doutrina do State Action; 2.2 O judicial review; 2.3 A cláusula do due processo of law – evolução ao patamar substancial e o critério de razoabilidade; CONCLUSÃO;
INTRODUÇÃO
Em qualquer ramo do Direito há construção de entendimentos oriundos das necessidades que tem uma comunidade em evolução. A História, esta verdadeira arquiteta da sociedade, procura, nada mais, nada menos, que colocar as coisas no seu devido lugar. E, para além, alocar uma visão global sobre o que perpassa, ainda que seja subjetiva como todo olhar.
Então, considera-se que não tem sentido algum compreender o sistema jurídico anglo-saxão ou também nominado de comon law[ii] sem a noção ampla de sua evolução histórica. Isso porque este sistema jurídico tem por base uma construção evolutiva, de transformação, avançando sempre com base (ou porque não dizer com resquício) do que precedeu. As mudanças não se operam por meio de rupturas abruptas ou mesmo transformações de inopino.
Já o sistema romano-germânico, calcado essencialmente nas regras jurídicas produzidas pelo Poder Legislativo, evolui, como fonte primária, pela via do debate político efetuado no limiar do processo legislativo[iii]. É calcado essencialmente nas regras advindas do procedimento legislativo. Assim, não raras vezes, a evolução do sistema se propõe por rupturas radicais, ou mesmo por reformas abrangentes. Um exemplo claro de ruptura pode ser percebido quando se revoga um código inteiro para alocar-se outro no lugar. O cidadão dorme sendo tutelado por uma gama de regras e acorda com uma tutela jurídica completamente diferente.
Sendo assim, é facilmente perceptível a imposição em compreender a evolução histórica do sistema do comon law, o que se fará em dois momentos distintos: primeiramente no que tange ao sistema inglês, para então se passar à análise evolutiva do sistema norte-americano.
1 CONTRIBUTO DO DIREITO INGLÊS: BASES INICIAIS DO SISTEMA JURÍDICO DO COMON LAW;
Delimitar o início das coisas na linha contínua e nunca linear da História reduz-se, por vezes, a uma opção lógica. Dessa forma, preferiu-se iniciar os estudos acerca do sistema jurídico inglês em um ponto crucial da linha de tempo: a promulgação da em 1215. Este marco histórico será a gênese do presente desenvolvimento, até pela fundamental mudança operada no contexto jurídico em que se inseriu[v].
Pode-se dizer que, na época, a Inglaterra vivenciava um feudalismo muito particular. Possuía as seguintes características: a) existência de uma monarquia forte; b) autolimite do poder real; c) existência de um direito nacional unificado, paralelo ao direito eclesiástico; d) existência de uma “classe média” participativa nos negócios da coroa.
Em verdade, duas ordens jurídicas muito claras firmavam-se à época da promulgação da Magna Carta: o direito imposto pelo Rei, bem como o território comandado pelo Senhor Feudal. Estas duas fontes de comando jurídico conviviam, mas não necessariamente de forma pacífica.
Pode-se perceber, portanto, que durante a Idade Média, na Inglaterra, predominava o pluralismo jurídico, sendo que cada região tinha um “dono”, um gestor da coisa pública, juiz dos seus súditos e legislador dos seus vassalos. Quem detinha o sobre a propriedade, detinha o sobre ela. Então, percebiam-se duas cortes de justiça: uma nacional e outra existente dentro do feudo.
As “Cortes do ”, reais e nacionais, utilizavam um processo racional de julgamento, ou seja, não faziam parte do procedimento institutos como o das ordálias ou dos duelos, o que realçava um caráter muito mais formal e, porque não dizer, imparcial do que as cortes existentes dentro do feudo e comandadas, no mais das vezes, pelo Senhor Feudal.
O júri, por exemplo, era altamente disseminado no meio das cortes reais (nacionais). Já os “tribunais do feudo”, além de possuírem procedimentos díspares, não detinham um julgamento necessariamente racional.
Nesse sentido, foi inegável o prestígio angariado pelas “Cortes do C em detrimento aos “tribunais do feudo”. Além disso, no limiar do sistema jurídico nacional (se assim se pode nominar), criou-se uma figura muito importante que sobrevive até os dias de hoje: os , enfim, remédios de clemência contra abusos, tal qual o .
Então, os barões revoltam-se contra este contexto, e reclamam a volta do monopólio da jurisdição em sua posse, alegando a premência da cláusula do , ou seja, do “julgamento pelos seus pares” e a cláusula do , ou seja, a imposição do “direito da terra”, do “direito do feudo”. A Magna Carta é um documento que impediu o poder absoluto do Rei João Sem Terra, após um desentendimento deste para com o Papa e a aristrocacia. É considerada o primeiro capítulo no limiar do constitucionalismo.
Em verdade, esta “lei acima de todos”, ou seja, a Magna Carta de 1215, foi um marco no sistema jurídico em questão, tendo em vista que estabelecia direitos formalmente inseridos e respeitados inclusive pelo soberano. Assim, passavam a existir dispositivos geradores de direitos e de deveres.
Estas peculiaridades foram vitais para se conseguir estabelecer um direito acima do Rei, muito embora esta posição jurídica dominante somente tenha beneficiado aqueles que detinham alto poder aquisitivo. A expressão da Magna Cartapor exemplo, somente se referia aos ricos.
No século XVII, os embates entre o Rei e o Parlamento se intensificaram. Vários cidadãos e políticos ingleses passaram a se valer do texto da Magna Carta e da cláusula do para obterem suas defesas frente aos abusos do Rei.
No reinado de James I (1603-1625), os conflitos tornam-se extremamente violentos. Cumpre referir que o período de tal governo foi marcado pelo nítido caráter absolutista. O Rei era tido como uma personificação divina na terra. Se Deus podia tudo, o Rei da mesma forma. Logo, o Rei (“Deus”) estava acima das leis dos homens.
Nesse contexto, dentro do Parlamento surgem contestações a esta perspectiva, especialmente pela via de um famoso teórico, que se tornará um baluarte na concretização evolutiva do : Sr. Edward Coke. As idéias de Coke são tão importantes que influenciam de sobremaneira a revolução americana, processada no século seguinte.
Passa-se, nesse sentido, a entender que é a lei que faz o Rei e não o Rei que faz a lei. As normas devem ser criadas pelo consenso, e não pela via unilateral do soberano. As bases desses novos ideais eram calcadas também no Direito Natural, confundido aqui, no que se tinha como sendo o próprio . Para Edward Coke, o Rei deveria respeitar as bases do , ou seja, a vontade da comunidade.
Então, o autor tratou de sistematizar as premissas básicas deste sistema, que ficaria acima do Rei e do Parlamento, sendo um misto de direito escrito e não-escrito. Coke considerava que o brotava de uma , advinda de uma experiência, de um esforço e de um estudo de longa data.
Em 1610, as idéias de Coke saem deste embate político para tomar base em um importante julgamento, quase que um marco na evolução que se processava. Trata-se do famoso . O Dr. Bonham era um médico que sofreu uma multa porque não estava autorizado a exercer a medicina. O estatuto médico da época, editado pelo Parlamento, mencionava que quem aplicava a referida penalidade pecuniária era a Academia Médica da Inglaterra, e o valor da multa era revertido à própria entidade. O Tribunal inglês considerou nulo tal castigo, porque a Academia era advogada e juíza ao mesmo tempo. Pioneiramente, o Tribunal inglês anula um ato administrativo com base no
Infelizmente, os argumentos e a forma de julgar estabelecidos no não foram repetidos nos julgados que se sucederam. Por mais incrível que se possa parecer, esta decisão somente foi retomada nos Estados Unidos, pelos colonos americanos que queriam anular os atos abusivos praticados pelos ingleses.
A importância deste julgamento é inegável por vários motivos. Não só aplicou o com supremacia sobre os atos do Parlamento, como permitiu com que, pela primeira vez, fosse exercido o “controle de constitucionalidade” de normas[vi]. Enfim, a cláusula do devido processo legal, ainda que estabelecida na sua faceta formal, deu cabo de nulificar um ato parlamentar em prol da supremacia do direito comum.
Outro precedente marcante foi o caso , julgado em 1629. O Rei Carlos I (1625-1649)[vii] necessitava de mais verbas para financiar a guerra estabelecida contra os huguenotes, na França. O Parlamento nega a possibilidade de uma maior taxação de impostos e o Rei fica obrigado, então, a estabelecer um empréstimo compulsório sobre o patrimônio dos nobres. Alguns destes negam-se a pagar, e são presos.
O advogado Selden, adepto das teorias de Eward Coke, impetra em favor de um nobre que fora preso, alegando que ninguém poderia ser detido sem o respeito da cláusula do O patrono do aristocrata dizia que a cláusula do impunha que seu cliente fosse julgado pelo júri. Logo, estava violado o devido processo legal.
O não obteve sucesso. Sendo assim, a cláusula do , base do julgamento, passou a ganhar duas interpretações: a) necessidade de o acusado ser julgado pelo júri (por sinal, o argumento principal de Selden); b) representava a existência de outros sistemas jurídicos (argumento adotado pela corte, privilegiando, é claro, uma visão absolutista da matéria).
Com base neste embate político, o Parlamento envia uma petição ao Rei Carlos I, reclamando que se confira um caráter normativo ao identificando-o com a cláusula do “direito da terra”. O Rei assina a petição em troca dos fundos de que necessitava para o combate. Esta petição foi nominada de “”, sendo um importante documento na história do sistema jurídico em questão. Nela foram abonados inúmeros direitos como a garantia da liberdade, de não ser preso arbitrariamente, da aceitação do contra os atos do Rei, de impossibilidade de se impor tributos sem a aprovação do Parlamento. Estes direitos tinham base na doutrina de Coke. Contudo, estavam despidos de efetividade.
Cabe referir que os esforços dos teóricos do inglês não foram suficientes para impor ao próprio sistema uma face substancial ao , o qual ficou timidamente em um patamar formal[ix]. Além disso, o controle dos atos pela via do devido processo legal se deu muito mais no que tange às ações do Executivo (abusos do Rei), do que aos atos do Legislativo[x]. Contudo, inegavelmente, o sistema jurídico inglês serviu de lastro essencial ao sistema americano, que deu cabo de dar uma evolução ainda maior à matéria.
2 CONTRIBUTO NORTE-AMERICANO: EVOLUÇÃO DO SISTEMA
Ainda antes da independência, quando a América do Norte conservava sua subserviência para com a Inglaterra, as bases da doutrina de Eward Coke penetraram no sistema jurídico de então. Na época, tinha-se instituído a supremacia das Cartas inglesas impostas à colônia. Como fundamento a esta supremacia, eram sempre invocadas as bases teóricas do .
Em 1767, por exemplo, a Lei que instituía impostos na colônia, foi questionada judicialmente com base na doutrina de Edward Coke, ou seja, lastreada na supremacia do , bem como com base nos direitos naturais, cuja matriz teórica se encontrava em John Locke. Além disso, os estados independentes, mesmo antes de se ter uma Constituição Federal que unificava a Nação americana, perfaziam um controle de constitucionalidade com base nas constituições de cada Estado. Tinha influência, no período, por exemplo, o .
Após a declaração de independência, em 1776, e posteriormente à vitória sobre a Inglaterra para consolidar a liberdade, em 1783, edita-se a Constituição Federal de 1787, a qual afirmava em destaque que ela era a . Então, conclui-se, já de início, que os atos contrários à constituição não eram “direito da terra” e, portanto, não faziam parte do conjunto normativo. Em melhores termos, não obrigavam.
Contudo, o texto original do referido diploma normativo era por deveras abstrato. As cláusulas constitucionais eram estabelecidas em um padrão de texto aberto, sendo que a cláusula do , por exemplo, somente veio à tona com a edição da quinta emenda, isso em 1791.
A partir deste momento, as importantes discussões no âmbito do sistema jurídico americano deram-se no que tange a se estabelecer, com precisão, os limites do controle de constitucionalidade. A nosso ver, não seria um exagero afirmar que o controle de constitucionalidade seria o núcleo central ou quem sabe a espinha dorsal do norte-americano. Logo, as discussões teóricas importantes voltaram seus esforços em delimitar os contornos da atuação deste controle.
A primeira opinião defendia a , ou seja, não se poderia conceber um poder com capacidade de anular o outro. O controle de constitucionalidade, neste aspecto, então, seria uma usurpação de poder, fragmentando, por completo, a Teoria da Separação de Poderes de Monrtesquieu, adotada no novo Estado. Para os defensores da tese ora exposta, o legislativo seria o “julgador supremo da constitucionalidade das leis”.
Uma segunda vertente doutrinária pregava um , ou seja, que cada poder, no seu interior, faria o controle de constitucionalidade. O Poder Executivo, por exemplo, não aplicaria uma lei considerada inconstitucional. E caberia ao Poder Judiciário dar a última palavra se uma lei era ou não considerada de acordo com a constituição. Esta foi a posição que prevaleceu, podendo ser percebida claramente no limiar do voto do Marshal, no famoso caso .
Assim, após a declaração de independência e a posterior unificação do País, pode-se perceber que o sistema jurídico em questão sofreu um processo evolutivo que teve fases muito claras:
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Fase tradicional: cujo ativismo judicial foi altamente moderado – de 1790 até o final do século XIX;
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Fase de transição: marcada pela concepção política, ou seja, por uma interpretação política dos casos postos sob julgamento; na época, os precedentes da Suprema Corte refletiam o laissez faire do Estado e a liberdade contratual – período que vai de 1860 ou 1890 a 1937;
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Fase moderna prematura: marcada por um autocontrole, ou seja, o comon law auxilia na interpretação da Constituição Federal – período de 1937 a 1960;
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Fase moderna: que inicia em 1960, e permanece até os dias de hoje; é marcada pelo ativismo judicial, pelo reconhecimento de inúmeros direitos para além daqueles catalogados na quinta emenda, ou seja, inclusive aqueles direitos não catalogados expressamente no Bill of right’s, e pela ampla utilização do substancial devido processo legal;
Na , a Suprema Corte americana apenas procurava revelar os significados dos termos constitucionais, em uma pobre hermenêutica literal. Não se percebe neste período a presença do , o qual tende a vivificar a Constituição, bem como modernizar seus conteúdos.
Então, a gênese do sistema jurídico dos Estados Unidos estava atrelada às características do que se nominou aqui de “era tradicional”. Esta fase dá lugar ao , momento em que os julgamentos passam a compreender elementos extraconstitucionais (fora da constituição). Isso pode ser percebido nos casos (1795)[xiii] e (1879). Em 1856, no caso , o Curtis questionou certo ato do legislativo. Em seu voto ele aproxima a cláusula do devido processo legal com a cláusula do .
Antes de dar continuidade à apresentação da evolução do sistema jurídico do , é importantíssimo ter em mente a seguinte informação: os direitos catalogados na primeira e na quinta emenda eram tidos por direitos federais, não se aplicando ou obrigando os Estados-federados. A cláusula do impedia com que os direitos das referidas emendas penetrassem no direito interno, tal qual a linha de pensamento dos barões ingleses, quando da promulgação da Magna Carta de 1215. Tais direitos eram aplicados somente no âmbito federal.
Assim, neste contexto, um marcante julgado é prolatado, o qual se tornou um símbolo na matéria. O conhecido caso (), julgado em 1857, ousa questionar a cláusula de barreira do adotada pelos Estados-membros. Na época, existia uma lei federal proibindo a escravidão nos territórios da união. No resto do país, cada estado poderia disciplinar a questão como lhe aprouvesse. No caso, o escravo Dred Scott foi adquirido em um local que, na época, era território federal, tendo residido, posteriormente, em local com mesmas características. Dessa forma, questionava a sua condição de escravo.
Muito embora a Suprema Corte tenha decidido que o servo era considerado propriedade e, portanto, poderia ser transportado para qualquer lugar, negando o pleito de Dred Scott, a partir deste julgado iniciou-se um intenso questionamento acerca das bases do . A idéia do , ou seja, do respeito à autonomia do Legislativo estadual passou a ser impugnada.
Passada a (1861-1865)[xiv], o sistema jurídico teve de ser revisto. Não se poderia mais aceitar o absolutismo da cláusula do , sob pena de os Estados do norte, vencedores no combate, nunca conseguirem a abolição da escravatura, um dos motivos de discórdia entre os dois hemisférios dos Estados Unidos. Então, naquele ínterim, edita-se a décima terceira emenda, que textualmente promove a abolição da escravidão no País.
Os Estado-federados que ficaram inconformados com a referida norma constitucional passaram a editar regras estaduais, diante do poder local, que estabeleciam discriminações entre negros e brancos. Criaram-se, pois, os , em um último esforço no sentido de manter intacto o vexatório e odioso sistema escravagista.
Na época, a fim de contornar a situação, o Congresso Nacional edita o que se convencionou chamar de “” e o “, contestando e procurando barrar os ”. O Presidente vetou estas duas normas, sendo, pois, derrubado pelo Congresso.
Contudo, ainda assim os Estados-membros negavam a vigência aos dois diplomas, alegando que a legislação federal não poderia revogar uma lei interna, porque, no âmbito do Estado, a cláusula funcionava como uma barreira. Dessa forma, a fim de acabar com esta disputa, é editada a décima quarta emenda à Constituição Federal, a qual determina a aplicação de todo o catálogo de direitos constitucionalmente garantidos no limiar dos Estados-membros. É pela via da décima quarta emenda que os direitos constitucionais, antes somente aplicados em nível federal, passam a penetrar no limiar do sistema jurídico de cada estado, mas isso muito tempo depois de sua edição.
Entendeu-se, assim, que o Congresso poderia ofertar direitos civis. Contudo, sua regulação caberia aos Estados-membros. E estas regulações, porque irrazoáveis, passaram a ser questionadas na Suprema Corte, conforme será demonstrado[xv]. A penetração do previsto na emenda quinta, no sistema jurídico interno dos Estados-membros aconteceu paulatinamente pela via da emenda quatorze.
Uma das primeiras decisões que permitiu a superação da cláusula de barreira nominada de foi no julgamento do caso , em 1906[xvi]. Aliás, considera-se que esta “penetração” se deu pela via da décima quarta emenda com o auxílio do devido processo legal.
A partir do julgado de 1906, para operar-se a entrada dos direitos civis no interior do sistema legislativo dos Estados-membros, dois requisitos eram fundamentais: a) havia a necessidade de saber se o governo violou um direito inalienável dos cidadãos; e b) se este direito seria tão fundamental, que a sua recusa negaria o . Esta posição teórica foi nominada de ”, ou seja, era imprescindível a averiguação da seletividade do Direito.
A doutrina do , por outro lado, criou outro efeito: permitia com que a Suprema Corte decidisse com um alto grau político, uma vez que poderia valorar de forma, por assim dizer, subjetiva acerca da “seletividade” ou não de um direito no caso concreto. Esta incorporação pode ser percebida de forma paulatina desde o caso até 1960.
O próprio afirmou, certa feita, que o protegia direitos com prioridades superiores e direitos com prioridades inferiores. Assim, alguns direitos deveriam ser absorvidos de forma compulsória pelos Estados-federados, em detrimento da não-absorção de outros[xvii].
2.1 A doutrina do
Acompanhando a linha evolutiva, surge uma doutrina muito importante que se tornou uma referência mundial: a teoria do “”. Então, para a compreensão exata do instituto, mister uma pausa na narrativa acerca da construção do sistema jurídico do americano, para se dedicar especificamente ao tema.
A doutrina do impõe, em suma, que o estado deva garantir a proteção dos direitos fundamentais. Em verdade cria um dever amplo e impositivo ao Poder Público para que atue protegendo os direitos catalogados no . Contudo, logo surgiu a seguinte pergunta: State Action
Muito se debateu a respeito. A Suprema Corte americana construiu, paulatinamente, algumas premissas. Entende que os direitos civis, nas relações privadas, não se impõem. Mas é possível que o Estado comine sanções civis e penais pelo descumprimento de um direito do catálogo do ainda que se esteja diante de uma relação de cunho particular.
Em outros momentos, a corte suprema inferiu que a violação de direitos civis por particulares somente é possível se o estado permite, sendo difícil, no caso, perceber a responsabilidade estatal. Então, formaram-se algumas premissas em que a responsabilidade estatal poderia ser configurada:
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De forma indireta, quando o particular atua sob a autorização de ato normativo inconstitucional;
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Por atuação de agentes estatais, inclusive aqueles agentes privados que exercem funções delegadas;
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Atuação de um agente privado mesmo tendo o Estado o proibido;
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Atuação de um ente privado por conta de ter recebido autorização estatal para tanto[xix];
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Quando há a participação intensa (fora do normal) de um ente público em um ente privado. Ex. alto financiamento ou intensa regulamentação[xx];
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Quando o particular deve se utilizar do Poder Judiciário para exercer um direito catalogado no Bill of Right’s, o que se conhece por “reserva de jurisdição”[xxi];
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Facilitações estatais a agentes privados que violam os direitos civis[xxii];
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Omissão do estado causa a violação de direitos;
Assim, a partir destas premissas, passou-se a entender que a cláusula do devido processo legal, inclusive na sua versão substancial, somente era aplicada quando existia a presença do , ou seja, quando o direito civil violado provinha, ainda que de forma indireta, de um agente público, em um dos casos acima apresentados.
2.2 O
Outro instituto merecedor de destaque no sistema jurídico do norte-americano é o , conhecido no sistema romano-germânico como “controle de constitucionalidade”. O instituto em pauta teve seu redimensionamento a partir da décima quarta emenda. Isso porque, a partir dela, somente os direitos do poderiam sofrer controle de constitucionalidade pela Suprema Corte. Os demais são controlados por outros meios e em outras instâncias. Se assim é, percebe-se que a Suprema Corte somente atua nos casos em que se percebe a presença do . Resumindo: a doutrina do fundamenta o .
Da mesma forma, a análise do conjunto fático não é possível no âmbito da corte suprema. Não é admitido, então, o reexame de provas nesta instância de justiça[xxiii]. Nesse sentido, a Suprema Corte resume suas decisões em dois tipos, caso se superem os requisitos para se analisar o recurso:
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Não acolhe o recurso;
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Acolhe o recurso e manda à Corte inferior:
b1) impõe um rumo decisório, ou seja, os limites cognitivos que a corte inferior deve seguir;
b2) permite que a corte inferior tenha mais liberdade na sua decisão; por isso, neste caso, quem ganha na Suprema Corte, quase sempre perde quando do julgamento pela corte inferior, porque esta se afasta dos argumentos acerca da inconstitucionalidade, mas decide com base em outros;
Inicialmente, cabia ao Congresso Nacional a interpretação da Constituição Federal (século XIX). Quando os democratas assumiram a maioria das cadeiras do legislativo, a tarefa de interpretar a Carta Magna passou à Suprema Corte, porque o Congresso passou a não interpretar a décima quarta emenda por leis.
Com esta virada política, a mais alta corte de justiça dos Estados Unidos percebeu que o direito natural, os princípios do , etc., não eram seguros a adaptar os dispositivos fluidos da Constituição aos casos concretos. Dessa forma, firmou-se uma premissa adotada ainda hoje: somente era (é) possível declarar a inconstitucionalidade de um preceito normativo, quando esta nulidade mostra-se visível. Se existem várias interpretações ao preceito, e algumas delas são constitucionais, estas devem ser respeitadas, o que permite manter a constitucionalidade da regra examinada[xxiv].
Em 1896, no caso , a Suprema Corte entendeu que a lei do Estado da Lousiana que permitia a segregação racial em trens (negros somente poderiam viajar em determinados vagões, apartados dos brancos), foi declarada constitucional. Permitiu-se que a humilhante política dos “separados, mas iguais” permanecesse. Logo, não se aplicou, ainda neste período, a doutrina do , muito embora se tenha, proferido alguns votos divergentes.
Contudo, em (1917) uma lei municipal que proibia que negros comprassem uma casa em uma quadra com maioria branca (e vice-versa) foi declarada inconstitucional. A Suprema Corte alegou que a regra violava a décima quarta emenda. Justificou a não-aplicação do caso Pessy alegando que, naquele, o direito de ir e vir não era impedido (havia vagões destinados aos negros). Já no caso em foco, o Day mencionou que havia um esvaziamento do direito de propriedade[xxv].
É importante referir que desde 1925 a competência da Suprema Corte em decidir é discricionária, ou seja, ela escolhe se julga ou não os casos submetidos à sua jurisdição. Em verdade, a corte suprema só se manifesta quando é violado ou suprimido o “núcleo duro” (caráter essencial) dos direitos garantidos em lei federal ou na Constituição.
Como os Estados-federados possuem um alto grau de autonomia, legislam sobre a mesma matéria, por vezes, de forma completamente diversa. Neste caso, a Suprema Corte já se manifestou em várias oportunidades no sentido de que não cabe recurso por conta da disparidade de tratamento, ou seja, com base na violação do princípio da igualdade.
2.3 A cláusula do – evolução ao patamar substancial e o critério de razoabilidade
A construção jurídica do perpassou toda a história norte-americana. Aliás, não é demasiado afirmar que este instituto sofreu as influências dos períodos político e econômico que atingiram os Estados Unidos, porque foi utilizado como instrumento de fomento ou de mudança das políticas públicas e visões econômicas implementadas no limiar da história deste país. Sua importância é tamanha que não seria exagerado dizer que o encontra-se para o como um leme para o navio.
Ao longo dos anos, o passou a ser concebido em dois tipos: em uma visão formal e em uma visão material.
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Visão procedimental = impõe o respeito a um devido procedimento; necessita-se de um rito previamente estabelecido para que se possam restringir direitos;
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Visão substancial = possibilidade de controlar o conteúdo dos atos normativos e administrativos que não sejam razoáveis;
Merece destaque o fato de o não poder ser controlado aprioristicamente. Sua atuação deve ser tópica, ou seja, diante do caso concreto, porque depende da história e das suas circunstâncias.
De 1837 a 1884, timidamente o devido processo legal passa a ser remodelado. Deixa de ter uma faceta meramente procedimental, a qual impunha um mero respeito aos atos processuais, sem questionar-se acerca da razoabilidade do conteúdo do ato, para dar lugar a uma apreciação material e questionadora.
Vários votos dissidentes de alguns magistrados da Suprema Corte passaram a perceber que o poderia ir além, ou seja, as limitações a direitos civis praticadas pelo estado somente poderiam ser tidas como constitucionais caso razoáveis, o que impunha uma nova concepção acerca do instituto. Pioneiramente, o Field, em 1873, disse que não era razoável que uma lei do Estado da Lousiana conferisse o abate de animais a uma só empresa (monopólio)[xxvi]. Não havia uma ponderação entre os meios e fins[xxvii] no caso em concreto.
Contudo, o voto que prevaleceu foi o do Mûller, entendendo que não se poderia adentrar no mérito do ato normativo estadual. Este voto balizou a Suprema Corte por longos anos, impedindo a evolução do critério de razoabilidade e do devido processo legal. Aliás, nos anos que se seguiram a razoabilidade variou o bastante, para, ao fim e ao cabo, não significar mais nada. A retomada de um significado lógico e preciso somente ocorreu muito tempo depois. Um argumento que muitas vezes vinha à tona, como fuga ao enfrentamento da razoabilidade de uma lei, consistia na alegação de que seria o povo quem deveria auferir a razoabilidade das coisas, especialmente quando comparece às urnas, e não quando comparece às Cortes.
Somente a partir de 1880 é que a Suprema Corte passa a aceitar com mais intensidade o , nos moldes da linha argumentativa do magistrado Field. No caso , o Brown conferiu as linhas mestras do “”, utilizado até hoje em todo o mundo:
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O interesse no caso deve ser geral; a Suprema Corte carece de interferência quando a intervenção é meramente particular;
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Verificação da necessidade da constrição do direito para o alcance do fim pretendido;
Em sendo assim, o legislador seria o primeiro órgão estatal a auferir a razoabilidade de uma norma. O Poder Judiciário somente faria a conferência da razoabilidade após.
De 1880 a 1920, os Estados Unidos obtiveram um rápido crescimento econômico, adentrando com afinco na era liberal. Quando o estado intervinha na economia por meio de regras, estas eram questionadas na Suprema Corte. Esta, por sua vez, não se furtou em adotar uma postura liberal, o que permitiu o franco desenvolvimento do e a técnica da razoabilidade.
Aliás, neste interstício, o controle de constitucionalidade e o devido processo legal eram permeados com elementos extraconstitucionais. Enfim, passou-se a ter uma visão jusnaturalista do tema, com base no contrato social e no que se convencionou chamar de “”.
Uma nova revolução constitucional somente é operada, em termos mais radicais, em 1937. Neste ano, um importante é julgado, o qual se tornou um marco importante na matéria. Trata-se do processo , cuja relatoria coube ao Roberts.
No caso em pauta, discutia-se se era possível a criação de um comitê que fixava os salários das mulheres e das crianças. Roberts questiona os julgamentos precedentes da Suprema Corte que, em suma, sempre privilegiaram o dogma da autonomia da vontade. Pergunta se haveria mesmo autonomia da vontade em contratos de trabalho, especialmente se o empregado era mulher ou criança. Conclui que, nestes casos, existiria uma .
Assim, o julgamento revisou três dogmas: a autonomia do contrato, o teste de razoabilidade e a presunção de constitucionalidade em matéria econômica. O teste de razoabilidade, por exemplo, não exigiria mais uma relação clara entre meio e fim. Com a queda do e do liberalismo civil, aumenta-se a tutela de direitos, o que reclamou, portanto, a mudança de postura mencionada.
O sentido tradicional do controle de constitucionalidade via na Suprema Corte apenas a função declarativa, ou seja, como mera reveladora de sentidos objetivos oriundos do texto constitucional, sem se pensar que era necessário ao jurista fazer escolhas valorativas. Diante da realidade mutante que se processava, de uma realidade repleta de câmbios sociais, não se poderia mais crer em um apaziguado, cândido ou alheio. As mudanças sociais, como por exemplo, a adoção do , imprimiram outra postura ao magistrado[xxviii]. Com a transição do estado liberal ao estado do bem-estar social, o ativismo judicial ganha força.
Ainda em 1937, outro julgamento revoluciona a matéria: . Em verdade, é a nota de rodapé número quatro, do voto do Stone, que passa a ser um paradigma aos julgamentos que se seguem[xxix]. As premissas lançadas podem ser resumidas assim:
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A presunção de constitucionalidade poderia ser diminuída em certos casos;
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Dever-se-ia ter mais rigor na análise dos direitos de igual participação;
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Cria-se um novo padrão de julgamento nas demandas de cunho trabalhista;
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Os direitos dos trabalhadores que estavam catalogados na primeira emenda[xxx] passam a ser canalizados aos Estados-federados pela via da décima quarta emenda;
Então, o período que vai de 1937 a 1960 pode-se chamar de “”. Neste período, ampliou-se o reconhecimento de direitos tutelados, ainda que de forma implícita, na primeira emenda. Logo, passou-se a reconhecer direitos implícitos, retirados da interpretação dos dispositivos contidos na Constituição. Religião, liberdade de imprensa, liberdade de associação e de expressão passaram a fazer parte da pauta forense da Suprema Corte.
Só para se ter uma idéia, no limiar da I Guerra Mundial, muitas leis de censura e de repressão foram editadas, todas elas sendo reputadas constitucionais pela Corte Suprema. Pode-se citar, como exemplo, os seguintes casos: , .
Com a II Guerra Mundial e diante da sucessiva a assunção da “Guerra Fria”, a Suprema Corte recrudesce na adoção do devido processo legal substancial. Passa a ter uma postura tímida e pouco contendedora acerca das violações às liberdades civis. Tais abusos eram permitidos em nome da “segurança nacional”.
Após este período, inaugura-se a fase nominada de “”, momento em que a corte máxima passou a utilizar o de forma autônoma. Este período, que se inicia a partir de 1960, ficou conhecido como a “Corte de Waren”, em homenagem ao Waren.
Além disso, a partir da década de sessenta, tutelaram-se outros bens que não somente aqueles de cunho econômico, bens estes retirados implicitamente da constituição. Os termos “vida”, “direito de expressão” e “liberdade”, por exemplo, forneceram um manancial de direitos que dali poderiam ser retirados.
Um exemplo desta mudança de postura pôde ser percebido em 1968, no caso , momento em que se reconhece o direito à privacidade. Era o início de uma nova era.
Tal período é muito rico, porque passa a combinar os direitos da primeira e da quarta emenda, esta antes pouco lembrada, bem como passa a reconhecer os direitos não-enumerados. Em (1968) e em (1969), por exemplo, é reconhecida a possibilidade de se divulgar material obsceno com base no teste de razoabilidade, derivado do .
Nas décadas de sessenta e setenta, muito famosos são os casos que visavam à proteção da livre manifestação pacífica contra as guerras. Percebe-se, assim, que a Suprema Corte deixou, definitivamente, de se ocupar com questões somente econômicas, o que era a praxe no limiar do século XIX e metade inicial do século XX.
A liberdade de procriar é enfrentada no caso , em 1974. Entendeu-se ser razoável a intervenção governamental no direito de ter um filho, evitando, assim, o aborto.
As relações maritais, ao seu turno, foram tuteladas em 1967. No caso , a lei municipal que proibia o casamento entre raças diversas foi declarada inconstitucional. Aliás, as relações familiares também foram questionadas. A liberdade de tomar decisões em relação à família foi submetida a julgamento em 1977, no caso . Tratava-se de uma lei municipal determinando o número máximo de pessoas por residência. Este fato fez com que Moore não pudesse ficar na guarda de seu neto. Tal dispositivo legal foi declarado irrazoável, ou seja, inconstitucional.
O aborto foi questionado no célebre caso de 1973. No julgamento o relator estabeleceu um longo debate histórico acerca da matéria. Por fim, a lei do Estado do Texas que proibia o aborto fora dos casos em que se verificava risco para a gestante foi declarada inconstitucional, porque não superou o teste de razoabilidade[xxxi].
As relações homossexuais foram enfrentadas no caso , momento em que se declararam constitucionais as leis que criminalizavam a sodomia de pessoas do mesmo sexo. Já o direito a uma morte digna (eutanásia) foi discutido com profundidade somente em 1990, no caso , momento em que os pais brigavam judicialmente pelo direito de desligar os aparelhos hospitalares que mantinham viva a filha Nancy, a qual se encontrava há vários anos em estado vegetativo.
O sigilo das transações financeiras, por sua vez, foi o objeto do caso (1976). Enfim, percebe-se claramente que a Suprema Corte passou a utilizar o devido processo legal em uma visão substantiva, bem como passou a decidir acerca de outros direitos que não aqueles somente de cunho econômico. Aliás, a década de sessenta e setenta do século XX mostrou-se extremamente rica no enfrentamento de matérias polêmicas.
Após os ataques de 11 de setembro de 2001, o governo de George W. Bush edita duas leis com prazo determinado e restritivas às liberdades. Tais normas contrariam frontalmente a jurisprudência da própria Suprema Corte, não tendo esta ainda se manifestado sobre elas.
Nesse sentido, questiona-se se foi ou não inaugurada uma nova fase no sistema jurídico americano, diante deste contexto. Entende-se que não, porque, mesmo não tendo se manifestado sobre as leis mencionadas, em julgamentos posteriores sobre outras matérias, a Suprema Corte manteve sua posição em utilizar o como forma de proteger o .
Passada esta longa evolução, a Corte máxima definiu como seria feito o , ou seja, como se processaria a trajetória para se aplicar o instituto. Para a aplicação da razoabilidade, certos questionamentos devem ser respondidos, o que seriam seus elementos centrais. O esquema apresentado a seguir influenciou o mundo inteiro, sendo de extrema valia hermenêutica a qualquer jurista ou legislador:
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Avaliação do valor alegado como constrito:
a1) o bem ou a liberdade são tutelados pelo ?
a2) esta restrição provém de um agente estatal?
a3) qual o grau de restrição?
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Avaliação do fim escolhido que o Estado quer promover:
b1) o fim é constitucionalmente aceito ou possível?
b2) o fim corresponde aos reais motivos da restrição?
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Avaliação dos pesos dos valores postos em jogo:
c1) há nexo de causa entre o meio escolhido e o fim pretendido?
c2) não existe meio menos intrusivo?
c3) o fim tem um peso suficiente para justificar a restrição?
A razoabilidade, assim, ficou claramente definida no limiar do Contudo, ainda no Século XIX, no caso , o Brown definiu o que se conheceu por “”.
Assim, a Suprema corte passou a conviver com dois “testes de razoabilidade”, um fraco e outro forte. No fraco, o enfrentamento da razoabilidade não precisa ser profundo. A mera aparência de razoabilidade entre o meio e fim, ou seja, a mera equidade na restrição permite a manutenção do ato legislativo questionado. Normalmente o “teste de razoabilidade fraco” é aplicado em legislações que tratam da ordem econômica.
No “teste de razoabilidade forte”, que pode ser conferido diante do detalhado esquema acima exposto, deve ser percorrido para se julgar um ato normativo inconstitucional, sendo que a motivação para se declarar um ato como não sendo razoável é muito maior. Verificar, por exemplo, o caso
Após este percurso, percebe-se o que Laurence Tribe chama de “escolhas valorativas”, porque é difícil imaginar que bens como liberdade e propriedade possam ser vislumbrados em um plano abstrato, mas sim, por meio de escolhas. São estas “escolhas valorativas” que causam um ativismo judicial, porque, antes de tudo, opta-se por uma ou por outra política pública.
Então, a Suprema Corte norte-americana passou a adotar algumas teorias. A primeira delas foi nominada de Doutrina da posição preferencial. Tal vertente teórica entendia que, no limiar do alguns bens tinham mais valor do que outros. Assim, estabelece-se uma nítida hierarquização[xxxii]. Complementando esta doutrina, surge a teoria do “, ou seja, o “interesse coercitivo” brota quando se tem uma . Para se restringir um bem preferencial, é necessário um interesse e um rigor muito maiores.
Assim, as opções da Suprema Corte na escolha de valores a serem tutelados estruturam um ativismo judicial que evita a corrosão do texto constitucional. Seu papel é inegavelmente antimajoritário, porque atua quando as decisões dos eleitos pela maioria contrariam a Constituição.
CONCLUSÃO
A apreciação evolutiva do sistema jurídico do comon law é condição sem a qual não há para se compreender o próprio sistema. Dificilmente uma visão de completude seria possível sem a sua maturação histórica.
Muito embora fosse esta uma pergunta a ser respondia logo na introdução, propositalmente ela foi deixada ao final: qual a importância em se estudar o sistema jurídico do comon law? A resposta é simples: pela sua influência. E se existe influência, existe a necessidade de uma compreensão detalhada a respeito, aliado ao fato de este sistema ser um tanto peculiar se comparado aos demais.
Institutos como o due process of law e a razoabilidade foram sendo formatados ao longo dos anos, sofrendo as influências históricas do percurso. Modernamente, percebe-se uma visão substancial do devido processo, a qual permitiu dar vazão ao postulado da razoabilidade. Cabe dizer que as limitações à liberdade e à propriedade não são impedidas pelo devido processo legal. O que se impede são as limitações sem ele.
Dessa forma, a aplicação do e da razoabildiade no âmbito do ocorre em três momentos:
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Diante da Doutrina da Incorporação Seletiva, ou seja, certos bens da vida, como liberdade e propriedade, são tutelados pela quinta e décima quarta emendas, que compõe o que se nominou de “Bill of Right’s”; neste espaço, o devido processo legal e a razoabilidade atuam; pela via da décima quarta emenda e do due processo of law é que os direitos do Bill of Right’s se incorporam no interior dos Estados-federados, superando a cláusula-de-barreira do Law of the land;
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Diante da Doutrina do State Action, ou seja, quando há a presença de um dever estatal, o devido processo legal e a razoabilidade devem atuar; nas relações eminentemente particulares, os dois institutos não se fazem presentes;
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Diante da Doutrina do Judicial Review, quando se perfaz o controle de constitucionalidade de certos atos perante uma lei federal ou perante a Constituição;
Nos Estados Unidos, um direito pode ser protegido de duas maneiras: ou é reconhecido dentro do e incorporado no âmbito interno pela via da décima quarta emenda, ou protegido via a cláusula do
[i] Mestre em Direito/UNISC; Professor do Curso de Graduação em Direito/FAMES, do Curso de Pós-Graduação em Direito/UNISC e da Fundação Escola Superior da Defensoria Pública do RS/Brasil; Procurador do Estado do Rio Grande do Sul/Brasil.
[ii] De início, é importante definir o termo comon law para os limites deste trabalho. Mesmo nos Estados Unidos ou na Inglaterra o termo “law” não possui apenas um significado, e este é um ponto inicial que dificulta a inclusão de um limite conceitual. Contudo, haverá a necessidade de se optar: para os limites da pesquisa será adotado o termo “law” como sendo relativo a expressão “direito”, ou seja, como “aquilo que é jurídico”. E, para a expressão “comon law” ter-se-á o cuidado de traduzi-la como “direito comum”.
A explicação histórica para este termo “direito comum” ou “direito dos comuns” também não possui consenso. Majoritariamente se entende que a expressão foi formatada ainda na Idade Antiga, especialmente no período da Roma Antiga (aproximadamente entre 700 a.C. a 500 d.C). Isso porque os romanos aplicavam o seu direito, codificado, claro, apenas para os cidadãos romanos. Aqueles que não detinham esta condição, ou seja, os “comuns”, submetiam-se ao seu direito. Então, existiam dois sistemas jurídicos: o direito dos cidadãos romanos, dos civis, enfim, o direito civil = civil Law, e o direito dos comuns, ou seja, o direito comum = comon law.
[iii] Não se pode negar, é certo, que o sistema jurídico do civil law possui outras fontes de produção do direito não menos importantes. Contudo, a base do sistema é assentada nas normas editadas pelo parlamento, congresso nacional, etc. (Poder Legislativo), com devida mediação do Poder Executivo. Mesmo no direito romano antigo, não se pode negar a importante contribuição ofertada pelos Pretores que, no mais das vezes, permitiam a adaptação dos institutos jurídicos à realidade que se processava.
[iv] O nome completo do documento é Magna Charta Libertatum seu Concordiam inter regem Johannen at barones pro concessione libertatum ecclesiae et regni angliae (Grande Carta das liberdades, ou Concórdia entre o rei João e os Barões para a outorga das liberdades da Igreja e do rei inglês).
[v] Duas outras expressões foram e ainda são consideradas nodais na formatação do direito anglo-saxão e componentes do due process of law: “Law of the land” e “judgement of his pears”.
[vi] No caso, é certo, não seria bem controle de “constitucionalidade” que se tratou, porque constituição propriamente não se tinha. Mas se permitiu que um direito com maior hierarquia, no caso o comon law, anulasse regras que lhe eram subordinadas.
[vii] Destaca-se que Carlos I sucede o Rei James I não só no trono, como também nas brigas constantes para com o Parlamento.
[viii] Há quem identifique neste julgamento uma aproximação da cláusula do law of the land para com o sistema do comon law.
[ix] Para que se concretize o substancial due process of law é necessário que se tenha a presença de uma Constituição escrita e rígida, bem como a previsão de direitos fundamentais.
[x] Na sequência, poderá ser percebido que, nos Estados Unidos, o devido processo legal foi utilizado muito mais para controlar os abusos do Poder Legislativo, especialmente quando se corporifica do substancial due process of law.
[xi] O controle de constitucionalidade, por exemplo, é um instrumento de extrema importância, senão a base do sistema jurídico norte-americano. Tanto é verdade que ele já era antecipado nos artigos 78 e 81 da magistral obra O Federalista, de Alexander Hamilton, John Jay e Thomas Madson. Há clara menção, nestes fragmentos, ao judicial review.
[xii] É importante salientar que nos Estados Unidos os processos judiciais são referidos pelos nomes das partes contendedoras.
[xiii] Momento em que se declarou inconstitucional a lei de desapropriações da Pensilvânia.
[xiv] Momento em que os Estados-federados do sul dos Estados Unidos declararam independência, irrompendo, daí, uma guerra para com os estados do norte.
[xv] Paralelamente à edição da décima quarta emenda, o congresso edita três diplomas legislativos que passaram a complementá-la: o Enforcement Act (1871), o Ku Klux Klan Act (1871) e o Public Accomodations Act (1875).
[xvi] Antes disso, em Hurtado v. Califórnia, os direitos catalogados na quinta emenda não foram aplicados aos Estados.
[xvii] Em 1947, o Justice Black disse que a décima quarta emenda deveria incorporar todos os direitos. Contudo, ao que tudo indica, tratou-se de uma posição isolada, tendo em vista que isto não ocorre até hoje.
[xviii] Um bom exemplo de interferência coativa, por meio de sanção, consiste na prisão civil do devedor de alimentos.
[xix] Aqui, a Suprema Corte teve uma grande dificuldade em definir o que é efetivamente “público”, para o fim de saber até que ponto a autorização estatal era possível. Ex.: o corredor de um Shopping Center foi considerado espaço público para se autorizar uma manifestação, ou seja, para se exercer o direito civil de liberdade de expressão.
[xx] Por exemplo: um asilo mantido por fundos públicos.
[xxi] No caso, a Suprema Corte enfrentou a seguinte situação: um contratante alienou sua casa a outrem, sendo que alocou no negócio jurídico uma cláusula no sentido de que o imóvel somente poderia ser utilizado por pessoas de cor branca.
[xxii] Por exemplo: o estado fornece gás e energia elétrica a estabelecimentos segregatórios;
[xxiii] No âmbito da Suprema Corte brasileira, da mesma forma. Conferir o teor da Súmula nº 279: “Para simples reexame de prova, não cabe recurso extraordinário”.
[xxiv] Um instituto muito parecido é encontrado no limiar do controle de constitucionalidade tedesco, nominado de “interpretação conforme a Constituição”, ou a Verfassungskonforme auslegung.
[xxv] Cabe referir que a questão racial somente é resolvida em 1950, diante do famoso caso Brown v. Board Education.
[xxvi] Trata-se de um dos Slaughter House Cases.
[xxvii] O Justice Field ficou vencido, sendo apenas um voto dissidente, assim como o Justice Brandley.
[xxviii] Neste momento, o judicial review passa a sofrer uma mudança quantitativa (é muito mais utilizado) e uma mudança qualitativa.
[xxix] Nos julgamentos posteriores, os magistrados da Suprema Corte, quando adotavam uma posição ativista, rememoravam, por várias vezes, a linha de pensamento da referida nota de rodapé.
[xxx] Como a Constituição dos Estados Unidos não possui a previsão de direitos sociais, estes são retirados implicitamente da primeira emenda.
[xxxi] Possui uma latente importância destacar as premissas estabelecidas nesse julgamento, na matéria relativa ao aborto. Antes do primeiro trimestre de gravidez, a Suprema Corte entendeu que o médico pode decidir livremente pela submissão da gestante ao aborto. No final do primeiro trimestre, é permitido que os entes públicos regulem com razoabilidade a possibilidade de se efetuar uma manobra abortiva. Após o primeiro trimestre, pode existir uma livre regulação e, inclusive, a proibição do aborto.
Este julgamento ofertou premissas abstratas e com alto grau de generalidade. Nos julgamentos seguintes, passou-se a discutir como proceder no que tange à possibilidade ou opção pelo aborto.
[xxxii] Considera-se esta posição perigosa, uma vez que, se todos os direitos catalogados no Bill of Right’s são fundamentais, não há que se falar em privilégio de um em detrimento de outro, ou seja, em hierarquia. Além disso, é difícil perceber a estruturação de tais direitos em níveis de preponderância. Por fim, a doutrina da posição preferencial causa uma presunção de inconstitucionalidade, invertendo a premissa básica do judicial review que advoga a presunção de que as normas são conforme a Constituição. Com a incidência da doutrina em pauta, os questionadores da norma possuem em seu favor a presunção de inconstitucionalidade, o que é um total contra-senso, para dizer o mínimo.
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